da crónica "O Inspector, a Lei, a Cigarrilha, o Casino e o País Pacóvio" de Fernanda Câncio in Diário de Notícias, 04 Jan 2008
"Não é ouro sobre azul, mas é preto sobre prata, o acaso que juntou, na noite da passagem de ano e no salão do mesmo nome, o inspector António Nunes, notório líder da ainda mais notória ASAE (Autoridade de Segurança Alimentar e Económica) e a repórter do DN Céu Neves. (...) O inspector, coitado, devia estar lá para passar um bom bocado e eis que se transformou em notícia, ao vivo, a cores, e até com cheiro, ao ser visto pela Céu a saborear uma cigarrilha nas primeiras horas da entrada em vigor da lei do tabaco, que o organismo que chefia tem a incumbência de fiscalizar. O fotógrafo Tiago Melo enquadrou-o e zás, uma imagem que já correu o mundo (a agência Reuters pegou nela, como a BBC, o New York Times e o Der Spiegel).
António Nunes lá arranjou uma explicação: que estava num casino e que a lei do tabaco não se aplicava ali. Assis Ferreira, do casino, veio reiterar: que a lei do jogo se sobreporia a outra, etc. e tal. O que, a bem dizer, é extraordinário (...) porque a lei do jogo não diz nada sobre o fumo do tabaco a não ser que se devem criar "sempre que possível", nas salas de jogo, espaços para não fumadores - o que significa apenas que se assumia o princípio geral anterior à nova lei, o de que os não-fumadores eram os parentes pobres, discriminados em todo o lado; porque se a lei do jogo se sobrepusesse à do tabaco, também se sobreporia a similares como a droga, o que implicaria poder-se snifar coca e fumar chinesas no salão preto e prata; e porque as respostas de Nunes e Ferreira significam que ou não sabem do que falam - e exigia-se que soubessem - ou estão a inventar desculpas tristemente sem pés nem cabeça.
O pior de tudo isto, porém, não é o péssimo exemplo que o dirigente da ASAE, grande inquisidor da colher de pau e da bola de berlim, deu ao país todo na matéria do cigarro, numa espécie de licença tácita para abandalhar. Nem a descredibilzação do seu papel e do da entidade que chefia. Nem o facto de vermos deputados a terem de "Analisar" uma lei que aprovaram, a ver se a percebem (e a exigirem que o director Geral de Saúde que os esclareça, que lata), ou um casino a tentar não pagar uma multa. O pior de tudo isto é a parvoíce provinciana de um país que, cinco meses e meio após a aprovação da lei, acorda para a realidade como se lhe tivessem decretado de surpresa as novas regras e como se leis como esta - e mais rigorosas que esta - não estivessem em vigor, há anos, noutros países, onde, diz-se, parece que também há casinos, e discotecas, e restaurantes, e cafés, e pubs e, imagine-se, fumadores. E onde, consta, ninguém foi à falência ou se suicidou".
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